Há sons que não deixam dúvidas, e aquele trabalhar de motor só podia ser o prenúncio de um fim não muito longínquo. Apesar de tudo, continuou com o pé no pedal da direita, ao longo daquelas rectas intermináveis, com a única companhia de um velho rádio a pilhas que ia apanhando as estações possíveis naquele fim de mundo; porque já estava atrasado e a ideia de conduzir naquelas paragens à noite não parecia muito agradável. Ao ritmo cadenciado e sonolento dos troncos dos eucaliptos, a estrada aparentemente era uma linha de asfalto sem fim, o braço pendurado fora da porta e os cigarros a acumularem-se num cinzeiro sobrelotado a compôr o ambiente de um ameno fim de tarde de outono. No fim de contas até apetecia que a paisagem variasse, mas a única mudança era a luz cada vez mais ténue que o fez ligar os faróis do carro, o que não aconteceu quando girou o manípulo. Debruçou-se sob o volante para ver o que se passava mas, em vez de resolver o problema, deu com o carro a saltar, tendo enfiado uma roda na valeta. No instante seguinte, o carro já estava de novo na estrada mas algo chamou a atenção naquele canto do olhar que às vezes vê coisas que mais ninguém vê.
Um movimento
na imagem reflectida no espelho, um movimento que ganhou forma, a forma de um
cão, um daqueles cães com forma de cão; daqueles que as crianças desenham
quando pensam num cão. De raça, nem vestígio, o mais simples rafeiro, nem
grande nem pequeno, com o olhar fixo no carro agora parado naquela eterna recta.
De onde saiu, não chegou a perceber. Pé no travão, carro parado e o ralenti
como som de fundo, nem o vento se deixando ouvir na calma imensa do Alentejo
mais perdido; abriu a porta e, espreguiçando-se, com as pernas perras de horas
ao volante, fitou o bicho que, imóvel, continuava ali, no meio da estrada à
espera de alguma coisa. Baixou-se, pondo-se de cócoras e, estendendo o braço
com a mão aberta, fez um sinal para o cão se aproximar. Duas orelhas se
levantaram de imediato, um torcer de sobrolho, dois passos tímidos e um “avanço
ou não avanço?”. Mais uma pata que se mexe lentamente, outra segue-lhe o
exemplo, um “anda cá!”, um sorriso, e os passos do bicho cada vez menos lentos.
Agora, quase frente a frente, distinguiam-se claramente os dois desconhecidos.
O pêlo côr de trigo brilhava de quase vermelho no sol baixo que ia deixando
toda a paisagem em fogo. E mais um passo, e mais outro se lhe seguiu, até que
um focinho frio tocou a mão que se lhe estendia, mais um franzir de sobrolho,
“quem és tu?”, parecia dizer. De súbito, o silêncio pareceu invadir aquele
momento quando o som ausente do motor se tornou realmente ausente. “Não me
digas que...”. Por momentos o olhar desviou-se do cão para perceber que o motor
se calara, e no momento seguinte já o bicho não estava ali. “Mas onde é que...?”,
o pensamento não teve tempo porque já o bicho estava sentado, língua de fora e
sorriso de felicidade no olhar, no lugar do pendura, como que a dizer “vamos
embora?”. Pois, iam mas não era para já. Aquele motor precisava de quem o
tratasse.
“E foi assim que
este bicharoco veio parar cá a casa. Não fosse o carro estar tão velho e não
teria parado naquele lugar, naquele momento. Talvez... Tenho que o pôr a
trabalhar um dia destes...”.
Acendeu um cigarro,
serviu mais um copo aos amigos e brindaram ao cão, agora gordo, de pêlo
amarelo, que dormia estendido no chão da sala, com o Tejo como pano de fundo.
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