Tesouros de Criança
A gravidade do meu problema não se fez notar em
mim até o meu irmão olhar fria e longamente para a minha garage. Com o nosso
primeiro filho a caminho, a minha mulher tinha-me pedido para organizar a minha
caverna de homem, para arranjar espaço para carrinhos e cadeirinhas de bebé.
Ela sabia que não devia pedir-me para me ver livre de algumas pranchas - 41 da
última vez que contei, não contando com as que estão no Chile, Indonésia, Sul
da Califórnia e no norte. Em vez disso, a minha mulher pediu-me para arrumar a
parede de caixas recentemente trazidas da minha casa de infância. Tinha andado
a adiar isto há meses, apesar dos atraentes rótulos rabiscados nas caixas como
"Diários de Surf, Escola Secundária" e "Tesouros de
Criança". Eu sabia a história de Pandora. Sabia, com a prática de anos,
que a ignorância pode ser uma alegria.
Então, num dia de Inverno, abri uma cerveja e
destapei uma caixa, e dei por mim absorvido pelos talismãs e pequenas coisas
dos meus anos de formação como surfista: luvas de neoprene, talões de garantia
do meu primeiro fato Victory, pilhas de diários detalhando cada sessão, onda
por onda, desde 1990 em diante. Em vez de limpar e seguir em frente, comecei a
fazer um ninho. Organizei as minhas Surfer dos anos 80 numa prateleira. Liguei
o meu rádio tijolo, pus-me a tirar e a arrumar cassettes. Quando desenterrei a
pilha de posters que em tempos decoraram as minhas paredes, comecei a pô-los
por trás do suporte de pranchas, juntamente com os meus posters do Hendrix e
velhas fotografias queimadas do sol. Não senti apenas um toque de nostalgia -
senti-me feliz, em casa de uma forma que há muito não sentia.
Então o meu irmão apareceu, olhou para aquilo, e
perguntou-me por que raio é que tinha recriado o meu quarto de criança na
garage. Pareceu-me uma questão pertinente - questão que a
minha mulher, por gentileza, não me faria. Ali estava eu, aos 35 anos, e ainda
tão obcecado com o Surf que receava que o nascimento da minha filha fosse
coincidir com uma ondulação épica. Para lá da fachada de família nuclear, eu
sentia-me muito como uma criança, prestes a ter uma criança eu próprio. Raios,
eu estava a esconder-me no meu quarto de criança re-criado, a ler revistas
desbotadas enquanto a minha mulher lê livros de bebés lá em cima. Verdade seja
dita: eu tinha conseguido envelhecer sem nunca ter crescido... e suspeitei que
era a minha devoção ao Surf que me infantilizava.
Sem comentários:
Enviar um comentário