Uma daquelas manhãs de Março, em que não se tem bem a
certeza se ainda é Inverno, o sol teimava em entrar pela persiana, avariada há
já largos meses, desde que a desastrada da mulher a dias conseguiu destruir o
mecanismo aparentemente simples para qualquer mortal - não para uma mulher a
dias... Como tudo no quarto, o despertador já tinha visto melhores dias e, à
custa de tantas vezes ir ao chão, já só servia para ouvir as notícias em onda
média. Pelo tagarelar monocórdico do animador radiofónico consegui perceber que
já passava um minuto das nove. E a consulta no dentista marcada para as nove e
meia. "Foda-se!", pensei, e sem perder tempo apanhei as primeiras
calças amarfanhadas que me apareceram à frente, camisas passadas nem vê-las...
A solução, sair com a t-shirt da noite anterior. Ninguém repara nas nódoas de
tinto, quando se tem umas olheiras a chegar ao chão e um blusão de penas em
cima. Uma rápida passagem pela casa de banho, lavar os dentes, que a acelera
está à porta do prédio à minha espera. Com uma coisa destas não há trânsito,
penso, quando nas escadas me aparece a D. Ester, carregada de sacos, a arfar
debaixo de uma infinidade de casacos e casaquinhos, e "oh menino Vicente,
não me dá uma ajudinha, não?". Claro que a pobre da velhota tinha que morar
no quarto andar, não podia ser de outra forma. Mais andares tivesse o prédio e
ela havia sempre de escolher o último. "Obrigada menino, Deus lhe
pague!". Desço as escadas a correr, olho para o relógio, "foda-se, já
só faltam cinco minutos, e mesmo de mota...". E aí está, o homem do gás!
Tinha-me esquecido completamente. Vinham ligar-me o gás, depois de uma semana a
tomar banho com água aquecida no micro-ondas. "Não pode voltar à
tarde?", claro que não podia, que tinha muitas casas para ir e tal... Bom,
lá fui, 20 minutos perdidos, factura praqui, duplicado prali, verificações...
"Ora então muito bom dia!", e eu cheio de pressa
"foda-se!", a hora da consulta já lá vai, mas como se espera sempre
uma eternidade, não havia de fazer grande diferença. Finalmente chegado ao
dentista, as mãos congeladas porque na pressa as luvas ficaram esquecidas,
largo a mota à porta do prédio, subo as escadas dois a dois e, com um sorriso
de satisfação, dou de caras com a D. Irene, a secretária do consultório. "Oh
bom dia, Dr Vicente, estou farta de lhe telefonar. O doutor atrasou-se e só vai
poder dar consulta à tarde...". O telemóvel? Sem bateria. Estava a começar
bem, esta terça feira. No meio disto tudo, mais vale é ir tomar o pequeno
almoço ao café lá em baixo. Para não variar, como sempre que cá venho, peço uma
torrada e um galão, enquanto passo os olhos pelo Correio da Manhã: mais um tio
que esfaqueou o sobrinho, a gasolina subiu outra vez, o Benfica ganhou, tudo na
mesma. Ah, chega o galão e a sua inseparável torrada! Tiro um pedaço da torrada,
em pão alto cortado em seis pedaços, dou uma dentada e... divinal! Chamo o empregado, dou-lhe os parabéns, ao que ele responde
com um encolher de ombros desinteressado, voltando para trás do balcão para
servir um pão-de-deus a uma velhota de cabelo pintado de lilás.
No fim de contas, até não terá sido uma manhã tão mal empregada, se estou aqui a comer uma torrada e um galão quente. Porque este sol parece de
verão mas ainda não aquece. São agora quase dez e meia, olho pela janela do café
e reparo que o pneu de trás da mota está em baixo. Azar, penso, viro costas e
continuo a saborear a manteiga derretida daquela bela torrada."
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