quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

chique a valer!




(...) E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos...

     - Isto é fantástico, Ega!

     Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha... Sòmente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado – exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na ponta – imediatamente o janota estica-o e aguça-o, até ao bico de alfinete. Por seu lado, o escritor lê uma página de Goncourt ou de Verlaine, em estilo precioso e cinzelado – imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase, até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez, o legislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível de instrução – imediatamente põe, no programa dos exames de primeiras letras, a metafísica, a astronomia, a filosofia, a egiptologia, a cresmática, a crítica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao fotógrafo, desde o jurisconsulto até ao sportman... É o que sucede com os pretos já corrompidos de São Tomé, que vêem os europeus de lunetas – e imaginam que nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura, acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela  cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no deseperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros – para serem imensamente civilizados e imensamente brancos...

     Carlos ria:

     - De modo que isto está cada vez pior...

     - Medonho! É de um reles, de um postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão que comemos!

(...)

Eça de Queiroz – Os Maias, cap. XVIII

sexta-feira, 2 de maio de 2014

a duas décadas de distância



 








Pode parecer que não passou muito tempo desde esse triste primeiro de Maio, mas vinte anos são muitos anos. E a morte de Senna está já à distância desses vinte anos. Assim como já se passaram mais de vinte anos sobre as grandes conquistas de outro grande do desporto mundial, Tom Curren.



Ocorre-me referir este paralelo pelas semelhanças entre os dois: ambos tiveram carreiras em simultâneo, ambos atingiram o pico na mesma época, tinham aquela faceta de génios foras-de-série, bem como esse lado introspectivo, misterioso que não fazia mais que esconder uma certa introversão própria de quem vive no seu interior uma luta constante para se superar. E isso sempre veio em primeiro lugar na vida de cada um. Talvez tenham sido incompreendidos por isso, vistos como arrogantes, sentindo-se acima do comum mortal, mas o fogo interior que os guiava fazia na verdade com que pairassem acima de todos nós, vivendo numa abstracção nirvânica e num êxtase únicos quando em alta velocidade desenhavam as suas trajectórias. Génios.



Perfeccionistas, mestres do estilo e da arte de deslizar. Mesmo sobre água, Senna era um Curren que não deixava a sua máquina sair do caminho traçado. Curva após curva, aceleração sobre travagem, ambos levaram aos limites a pureza e a beleza de dois desportos aparentemente tão distintos, aproximando-os e aproximando-se como ícones, mitos para todos aqueles que apreciamos a verdadeira essência da estética no desporto.



Ayrton Senna e Tom Curren. Qualquer surfista que tenha vivido os anos de ouro de Senna, ou seja, toda a sua carreira, compreende a comparação.

Felizmente, Curren continua a encantar-nos com a souplesse das linhas do seu surf; Senna continua provavelmente com o pé no fundo, dentro daquele capacete verde-amarelo.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

território desconhecido















Territory

As the feather of a poet glides swiftly
on the white
of a sheet, we may aswell let ourselves
glide swiftly through the years
on the blue
of the tides
come and going as we come
as we go
hardening the beaten bones
through the turmoil of the days
but in the end it all comes
down to
the evidence
that all rights and all wrongs
just come with the
territory!

Can we tell if we see it
that the goods are there
before us
shine so bright
it's so blinding
waiting for a better chance
but we all know ev'ry swell
just won't last eternity
ageing bones
hardened skin
just climb aboard and
feel the stoke
despite all ups and all downs
water flowing will keep us going

letra de Luís Nascimento para música de João Rios


domingo, 2 de fevereiro de 2014

Sabedoria a 10000 metros de altitude


















"Entraremos amanhã na noite. Que o meu país ainda o seja quando o dia chegar! Que será preciso fazer para o salvar? Como enunciar uma solução simples? As necessidades são contraditórias. Importa salvar a herança espiritual, sem a qual a raça será privada do seu génio. Importa salvar a raça, sem a qual a herança será perdida. Os teóricos, à falta de uma linguagem que concilie os dois salvamentos, serão tentados a salvar a alma ou o corpo. Mas eu não quero saber dos teóricos. Quero que o meu país exista  - no seu espírito e na sua carne - quando o dia chegar."

Antoine de Saint-Exupéry
in Pilote de Guerre

[tradução livre]

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

take a walk on the wild side

Fim de tarde, hora de ponta, chuva miudinha, mais um dia no escritório que passou, uma terça-feira igual a tantas outras quintas-feiras... "Apetecia-me não vir trabalhar amanhã... E depois... Porra, não me apetecia trabalhar mais!...". Carros e autocarros que avançam lentamente, até que uma luz salvadora aparece à distância, tirando-o desses pensamentos. Livre, diz o sinal no tejadilho do táxi. "Que emprego chato, que seca de gente, que dias tão estupidamente iguais, e o tempo a passar, e eu sem coragem para mudar, para sair desta vida sempre igual... Gostava de ter coragem de um dia... Eh, táxi!".
"Uff, boa tarde!"
" 'tarde... pa onde é que é, chefe?"
"Para onde... Olhe, siga os seus sonhos!"
"Sigo o quê?"
"Nada, deixe estar... Vá só andando..."