- Isto é fantástico, Ega!
Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso!
Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo.
Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D.
João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se
à moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio
seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias,
de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha... Sòmente, como lhe falta
o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer
muito moderno e muito civilizado – exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à
caricatura. O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na ponta
– imediatamente o janota estica-o e aguça-o, até ao bico de alfinete. Por seu
lado, o escritor lê uma página de Goncourt ou de Verlaine, em estilo precioso e
cinzelado – imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase, até
descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez, o legislador ouve dizer que
lá fora se levanta o nível de instrução – imediatamente põe, no programa dos
exames de primeiras letras, a metafísica, a astronomia, a filosofia, a
egiptologia, a cresmática, a crítica das religiões comparadas, e outros
infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas as classes e
profissões, desde o orador até ao fotógrafo, desde o jurisconsulto até ao sportman... É o que sucede com os pretos
já corrompidos de São Tomé, que vêem os europeus de lunetas – e imaginam que
nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão
de progresso e de brancura, acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras,
defumadas, até de cor. E assim andam pela
cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no deseperado e
angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros – para serem imensamente
civilizados e imensamente brancos...
Carlos ria:
- De
modo que isto está cada vez pior...
- Medonho! É de um reles, de um
postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem
mesmo o pão que comemos!
(...)
Eça de Queiroz – Os
Maias, cap. XVIII