Nos tempos que vivemos, tornou-se corriqueiro ver
passar gente com pranchas, seja nas praias, nas cidades, seja em qualquer canto
do mundo. E se há uns anos o surfista comum fazia jus ao estereotipo do cabelo
comprido e ar de indigente, actualmente é difícil dizer quem é que, no meio
daquele monte de gente a formigar nas cidades durante a semana, para trás e
para a frente, irá estar mais cedo ou mais tarde a deslizar sobre a água com um
sorriso no rosto.
O mundo dos humanos é baseado em convenções. Escrevemos
da esquerda para a direita, usamos gravatas para dar um ar respeitável, ao sinal vermelho paramos
automaticamente... No entanto, há quem escreva da direita para a esquerda...
Quem use uma túnica e caminhe descalço... Quem abra um livro pela contracapa e, no entanto, o que lá está escrito não
deixa de fazer todo o sentido. Abordagens diferentes, resultados idênticos.
Há quem pegue numa twin e acelere em paredes sem
fim; há quem pegue numa thruster e faça derrapar a prancha no lip...
As convenções sempre criaram, inconscientemente, limites à criatividade
e à própria liberdade de expressão, fosse pela falta de percepção daquilo que é
possível, fosse pelas barreiras sociais; senão veja-se como eram olhados
aqueles que ousavam, nos anos 80 -para não ir mais longe- surfar num
longboard... Ou se era "radical" e se tentava -sim, tentava- surfar em pranchas
bastas vezes desadequadas ao talento dos cada uns, ou se era um
"velho", um inadaptado social, que se arrastava em alta velocidade
sobre um bloco de 9 pés de comprimento. Quantos surfistas se perderam em vãs
insistências de surfar em pranchas que ora eram muito finas, ora muito
estreitas, ora simplesmente não eram para eles, apesar de o campeão do momento
voar numa igual? Tudo para não ser rotulado de "velho do pranchão".
O Surf é uma actividade individual, logo não faz
sentido fazermos todos o mesmo, adoptarmos todos a mesma postura perante algo
que oferece um mundo de interpretações.
Cada um vê a sua relação com o Surf da sua forma
pessoal, para muitos é o mais próximo que têm de uma experiência religiosa,
para outros mero divertimento, passageiro ou não. Mas aqueles que são picados pelo
bicho e seguem vida fora, que quando acordam passam a olhar para o vento antes de olhar
para a chuva, que vivem a obsessão com um sorriso, são os verdadeiros espíritos
livres, embora presos pela dedicação quase doentia ao acto de deslizar sobre as
ondas. O que não é necessariamente mau.
É o prazer da antecipação, de um prazer seguro que
há de chegar, mais cedo ou mais tarde, que dá aos verdadeiros surfistas de alma
aquela serenidade e confiança de que vale a pena estar vivo. Porque aqueles
momentos fazem valer a pena ter nascido. E poucos poderão dizer isso de algo
nas suas vidas.
No futuro, quando o corpo começar a queixar-se, aqueles
que tiverem aberto os olhos mais cedo, irão poder ter o prazer de facilmente
voltar às sensações de pegar numa prancha maior e curvar com velocidade, ou de
num dia de ondas muito boas saltar para cima de uma twin e acelerar
desenfreadamente... E por aí fora... Os eternos Velhos do Restelo irão manter a
fidelidade às triquilhas de sempre, cada vez maiores, cada vez mais presas,
enquanto que um velho, mas não do Restelo, passa por eles a 200 no seu malibu
largo, espesso... e veloz. Porque é aí que reside a verdadeira alegria e prazer
no Surf: velocidade pura. Se houver tubos, tanto melhor.
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