segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Maré do tempo



















Ponta do Molhe
2 de Setembro de 2024
12h34

Toda a vida ouvimos falar no tempo que passa - quando somos novos ignoramos, rimo-nos, vivemos, queremos crescer, ser grandes, poder fazer aquelas coisas aparentemente inalcançáveis na infância onde a felicidade reina absoluta, felicidade de que não temos noção.
Depois, os sinais desse tempo que vai passando vão surgindo, muitos deles puro prazer, marcas, cicatrizes ou medalhas de vidas cheias.
Mas esse tempo que passa raras vezes o vemos passar - ver com o olhar. É sempre uma ideia, um conceito, uma abstracção.
Mas, sentado longamente aqui, nas pedras do molhe, com o escuro do azul profundo do mar à minha frente e o vento como um afago, vou vendo a maré que sobe, um pouco mais agora, parecendo recuar, voltando, movendo-se, a maré que acelera trazendo outras águas e, quase sem me ter apercebido, sou testemunha do tempo que passou, um passado tão próximo feito presente e futuro diante do mesmo olhar. 
A água que não estava, agora está. 
A pedra há pouco descoberta tem agora o mar a abraçá-la. 
Eu vi o tempo a passar.
Não o senti apenas.
Vi um pouco da vida a acontecer, a linha do tempo que nasce na inocência de ser criança e corre até ao conformismo de um fim que todos sabemos ser inevitável.
A maré continua a subir, a água continua a passar, a correr, a vida ante os meus olhos a acontecer... E o prazer de estar consciente de estar aqui deixa-me por momentos feliz - uma luz, um acordar de consciência de fazer parte de algo maior, um universo que nos transporta a todos. 
Vendo a maré do tempo que passa. 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

...do sol de Ipanema








Ouvindo, e vendo, um concerto de James Taylor gravado em 1970, dei por mim com aquela sensação cada vez mais recorrente de sentir que o tempo realmente passa. Não só por aqueles em quem vemos as marcas do tempo, mas por nós mesmos, onde as marcas do tempo demoram, aparentemente, mais a chegar. Na verdade, porque nós somos o Outro.

Entre aquela voz fantástica e o dedilhar inebriante na guitarra, apercebo-me que hoje ele é um velho senhor, com uma vida cheia, cheia de memórias, de momentos maravilhosos e outros naturalmente menos bons. Mas a vida é isso mesmo, a procura permamente por um equilíbrio constante. E ali, tão jovem e cheio de vida, ele é a imagem perfeita de uma eterna juventude que todos sentimos ter, cada um de nós convencido dessa mesma eternidade. Até um dia... 

E é nisso que penso, quando penso que continuo a construir memórias, memórias de momentos vividos tão só na vontade de viver esses momentos, de deixar o tempo ditar aquilo que será, instante após instante, dia após dia. Sem medo, de peito aberto e espírito livre. E esses momentos ficam, marcam, ganham raízes em nós e connosco seguem vida fora, parte de nós mesmos, que no fundo somos apenas a soma de todas essas memórias.

Estes últimos meses revelaram-se para mim um abrir de horizontes, abrindo o olhar para um mundo que se deixou ver muito para lá daquilo que eram os limites da percepção da vida que tinha até então. Sinto que muito daquilo que pensava passado pode ser afinal presente, e que o futuro só depende de nós, da ilusão com que encaramos cada dia, resgatando a juventude e a vontade de viver a cada passo, bebendo essa energia que cada momento e cada pessoa especial nos passa, como um elixir mágico que nos rejuvenesce e nos dá alento para olhar para o céu azul, vibrar de energia e querer gritar que a vida é realmente um milagre maravilhoso. Sem no entanto renunciar àquilo que somos, à carga que trazemos da vida que está para trás. É que por vezes basta um encontro, uma troca de palavras e de emoções para que a nossa percepção de tudo ganhe outra dimensão e nos leve a lugares com que nunca sonhámos. 

Sei que escrevo estas palavras a pensar em alguém que me fez ver mais além, que me ensinou, e ensina, a viver, a querer tirar da vida todo o sumo que ela tem; não somos, nem eu nem ela, pessoas perfeitas, mas é exactamente aí que a coisa se torna interessante. E só posso sentir uma gratidão sem tamanho por tudo o que ela me trouxe: vida, vontade de viver, de sonhar, de descobrir, de querer mais e ir mais além, consciente da maravilha que é a vida.

Um dia, tal como o James Taylor, vou olhar para trás e pensar: que vida maravilhosa esta...

Obrigado, moça do corpo dourado.

sábado, 23 de março de 2024

a decadência da essência cultural









Nos dias que correm, e de há uns tempos para cá, muita gente se apercebe que o mundo se tem tornado cada vez mais igual, um adolescente do sul da Europa veste-se da mesma forma que um adolescente do sul da Austrália, um executivo em Nova Iorque veste-se da mesma forma que outro jovem executivo em Frankfurt, a comida sabe toda ao mesmo onde quer que se vá... E os exemplos são infindáveis, com o turismo, que poderá ser o novo terrorismo, a arrasar sociedades inteiras em prol do benefício de cada vez menos.

A grande questão é o que acontece às identidades definidoras dos povos em cada lugar do planeta. Algo que foi o trabalho de milénios é agora dissolvido em pouco mais de um século, sendo que essa dissolução já lentamente teve início com as conquistas e explorações dos povos europeus em séculos passados.

Essas identidades, sedimentadas ao longo de gerações e gerações, levaram à criação de culturas, de modos de viver, de crenças e religiões, tudo isso ligado a territórios determinados, a climas determinados, a situações específicas que moldaram sociedades únicas, cada uma com as suas idiossincrasias.

Há quem já se tenha interrogado o que poderiam ser as Américas, a título de exemplo, se até hoje tivessem permanecido isoladas do contacto de outros povos. Não teriam a tecnologia dos europeus? Pois bem, teriam seguido outro caminho, e talvez hoje estivessem, enquanto sociedade, num lugar bem mais interessante que aquele onde se encontram.

Hoje, o politicamente correcto leva a que todos defendam acriticamente as trocas culturais (mas sobretudo económicas, mas isso é outra história...) como algo de grande valor na formação de cada um de nós, mas com isso a defesa e preservação das culturas ancestrais de cada povo numa lógica de continuidade morrerão a prazo. Mantidas apenas como peças de museu, curiosidades etnográficas ou atracções turísticas.

Os mesmos que defendem a multi-culturalidade e as trocas culturais como essenciais para uma cidadania mais consciente e informada, são os mesmos que defendem a preservação de cada uma dessas culturas exóticas e diferentes por si sós, sem se aperceberem que a sua própria interferência directa nessas mesmas culturas e modos de viver tem um efeito exactamente contrário, levando à sua progressiva dissolução e aculturação perante um modo de vida apelativo que tudo domina e que se sobrepõe a tudo o resto - o capitalismo criador de sonhos etéreos a que ninguém fica indiferente. Daí a explosão massiva das grandes metrópoles onde se amontoam milhões de seres em busca da melhor vida possível, cada vez mais despojados de qualquer identidade, iguais em todo o mundo, apenas funcionando como peças de uma gigantesca e disfuncional máquina de criar desilusões. Para benefício de uma elite que, igualmente despojada de qualquer identidade cultural ou social de relevo, mantém alegremente essa máquina a girar eternamente.

A solução? Não parece haver, pois teria que passar por um "retrocesso civilizacional" em que os povos reassumissem os seus modos de vida de outrora, afastando-se das influências que os fizeram desligar-se das suas raízes. Só assim poderia haver um mundo que preservasse a sua multi-culturalidade essencial.

E não uma multi-culturalidade que mais não é que um cozinhado que dilui todos os cambiantes de um mundo noutros tempos tão diverso e os transforma numa amálgama sem alma.

E isto para apenas ficarmos pelo lado humano da questão, sem entrar no mais complicado tema da preservação da bio-diversidade do planeta, que isso já são outros quinhentos - porque o Homem só olha para si próprio...


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Auto-consciência
















Há quem olhe para o mundo como uma tela.
Artista, dirão.

Há quem veja esse mundo como uma oportunidade de negócio.
Mercantilista, acusarão outros.

Há quem veja o mundo como um mapa infindável por onde viajar, por onde descobrir, onde se abrem horizontes e culturas uns após os outros.

Há quem olhe para o mundo e pense que todos temos que fazer algo para o melhorar, e com isso melhorar as nossas vidas.
As nossas vidas. Vidas humanas. O resto é paisagem.

E é exactamente aqui que está a diferença: conseguir ter a percepção de que o mundo não é nosso. O planeta não é um espaço à nossa disposição - nós, humanos, os supostos reis da criação.
Reis seríamos se nos déssemos conta que a nossa própria existência nos mata.

E só se aí chegarmos conseguiremos ganhar balanço para mudar as atitudes e trabalhar para o verdadeiro bem comum - que não é o bem comum aos Homens. Não. É o bem comum a todas as espécies que partilham esta bola azul connosco. Que não pára de rodar, por muito que nos julguemos no direito divino de tudo dominar- sem nos apercebermos da nossa ridícula pequenez. 

Reduzamos a ambição com que olhamos para o nosso planeta, deixemos de lado aquela exploração mineira, esqueçamos a multiplicação e a expansão daquele negócio para outros continentes, exploremos sim o nosso país, as nossas vizinhanças, deixando de lado o avião, boicotemos mesmo o avião!

Reduzamos a nossa presença às áreas que já condenámos, as grandes cidades. Devolvamos à natureza as áreas onde ainda tal é possível, isolemos as áreas intocadas. Isolemo-nos. Isolemo-nos como o vírus que somos e tentemos salvar verdadeiramente aquilo que nos dá vida: o planeta Terra e todas as espécies inocentes que, de uma forma ou de outra, sacrificamos no altar das nossas vaidades, seja a vaidade o prazer de usar um casaco de pele ou atravessar meio mundo de avião para carimbar um passaporte e dizer "eu vivi". Vivi porque viajei.

Não.

Viver é isso apenas. Viver. Diz-se que quem viaja vive. Mas quem viaja, hoje, vive mas tantos viajam de igual modo, que todos viajando matam.

O mundo acelerou, as viagens multiplicaram-se, a ocupação do território expandiu-se como um fogo que tudo acabará por consumir, e essas viagens mais não servirão que para assistir à verdadeira Terra queimada. Queimada pela nossa estupidez de tudo querer.

Poderá haver quem então continue a olhar para o mundo como uma tela.
Mas então uma tela em tons de negro.

Ou podemos, todos, pintá-la em tons de verde, com muito azul, e sobretudo muita vida. Vida para além de nós, humanos, que apenas estamos aqui de passagem. Mas uma passagem com uma factura bastante pesada...

Sejamos artistas. E apreciemos. E procuremos olhar para nós mesmos como iguais, como parte de um todo onde não somos mais que uma peça. Uma peça descartável. Cientes de um tempo em que nesta Terra o Homem seja apenas um episódio longínquo.